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Coisas que eu [não te] disse

Tudo o que não consigo dizer, escrevo.

Coisas que eu [não te] disse

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28 Abr, 2020

A primeira vez...

Que andei de avião

V de Viver

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Tenho alma de viajante. Penso eu, desde sempre. Quero viajar. Muito. Para lugares distantes. Sítios que nunca vi. Climas diferentes daquele em que vivo diáriamente. Quero sentir outros cheiros. Ver outras paisagens. Conhecer outras culturas. E, um dia, surge uma possibilidade. Uma oferta. Sim, uma oferta como que para me lembrar que afinal tenho sorte. Alemanha. 2017. A minha madrinha convidou-me. "Eu pago tudo" disse ela. Há anos que espera a minha visita e sabe que se depender do meu dinheiro, provavelmente, nunca chegará a acontecer. Primeiro digo que vou pensar. O orgulho. A mania de ser totalmente independente. "Por favor, eu trabalho, não preciso que ninguém me pague viagens." Não o disse, mas pensei-o. Não sou mal agradecida. É o orgulho e a fantasia de que não preciso de ninguém. Todos precisamos, hoje sei disso. Conto a uma amiga sobre o convite. "Não vais aceitar? Como assim? Estás sempre a falar em viajar! Olha, pergunta à tua madrinha se tem lugar para mais uma. E não se fala mais nisso". Estou agora no comboio a caminho do aeroporto. A vontade de ver mais, de conhecer mais, de ser mais, acaba por ser superior ao orgulho. "Claro que aceito a viagem madrinha" disse-lhe, ela pareceu genuínamente feliz." Claro que a tua amiga também pode vir" diz ela. "A minha amiga paga a parte dela madrinha, como é obvio". Digo isto mais para não haver mal entendidos, claro que ela já sabia disto. Chegamos ao aeroporto e sinto a excitação em todos os músculos do meu corpo. Nunca andei de avião. Nunca saí do país. Já fui a Espanha, claro. Mas uma vez que cresci numa aldeia que fica na fronteira com o país vizinho nunca considerei que fosse, realmente, uma viagem a outro país quando passava para o outro lado. Uma selfie nas escadas de acesso ao avião. Está um dia lindíssimo. O sol brilha forte como que para me transmitir que, também ele, está feliz por mim. É Novembro mas estamos de blusas sem mangas. Nada de casacos. Estão cerca de 20 graus, talvez mais. Mas no interior das malas só levamos roupa quente. "Estão aqui uns 3 graus, tragam roupa quentinha" disse a minha madrinha na noite anterior. Nem queria acreditar na minha sorte quando imprimi os bilhetes. "Vou viajar para a Alemanha." O coração salta, descompassado, sinto que tenho outra vez seis anos e que, embaixo da árvore de Natal, está um presente enorme que sei que é para mim. A expectativa. A promessa de algo divertido. O ânsia de realizar um sonho. Estou, imensamente, feliz. Entramos no avião e peço a uma senhora que está sozinha se pode trocar de lugar comigo. O meu lugar e o da minha amiga eram separados. A senhora, com uns sessenta anos de idade, uma blusa branca e uma saia creme, cabelo branco muito bem arranjado e óculos na ponta do nariz, faz-me lembrar uma personagem de um filme, embora não saiba dizer quem, e que, milagrosamente, percebeu o meu fraco inglês, diz que sim, sorri e vai para o meu lugar. Sentamo-nos. A minha amiga já andou de avião. Mas eu, bem, eu estou excitadíssima. Mas não com medo. A hospedeira de bordo faz uma introdução de procedimentos de segurança. De seguida informam que devemos colocar os cintos e que o avião vai descolar. "É agora! Vou andar de avião pela primeira vez na vida." Uma ligeira trepidação. Sinto, mais do que vejo, que seguimos lenta e ligeiramente, e, de repente o avião começa a subir. Olho pela janela, embora nenhuma de nós tenha conseguido ficar com o cobiçado lugar. Estou a voar. "Estás com medo?" pergunta a minha amiga. "Não, nada mesmo" respondo-lhe a sorrir. Sorriso sincero. Feliz. Imenso. Ainda não estamos no ar há dez minutos quando me dou conta que a minha amiga está a dormir. "Como é que ela consegue?" penso. Estou de tal forma eufórica que nem consigo pensar em dormir. Fecho os olhos. Mas não para dormir. Para sentir ainda mais fortemente todas as sensações. Sim, se fecharmos os olhos todos os outros sentidos ficam mais apurados. Consigo sentir o cheiro do café que alguém pediu. Ouço imensas conversas em línguas diferentes. Conversas animadas mas das quais não consigo descortinar o tema. Ouço um bebé a chorar. "Deve estar assutado" penso. Continuo a ouvir tudo o que consigo. Abro, lentamente, os olhos. Nesse momento a cabeça da minha amiga, que dorme já profundamente, cai no meu ombro. Deixo-a ficar lá, e encosto a minha cabeça na dela. Imagino o que me espera na Alemanha. Tenho saudades da minha madrinha. Estou feliz por ir vê-la. Mas estou ainda mais feliz porque vou viajar "a sério" pela primeira vez na vida. "Estarei a ser injusta e egoísta por estar mais feliz por viajar do que por ir ver a minha madrinha?" recrimino-me, mas logo digo a mim mesma que é normal. Estou apenas a ser uma criança excitada que, pela primeira vez, faz algo pelo qual anseia há muitos anos. Uma criança feliz por ter uma oportunidade de ver outros lugares, respirar outros ares, sentir outros cheiros. Uma criança que nunca pensou ter a possibilidade de andar de avião, para quem essa era uma realidade inconcebível. "Mas aqui estou eu", penso. A mostrar a mim, e ao mundo, que a vida dá voltas. Que aquilo que somos hoje podemos não ser amanhã. E que todos, absolutamente todos, os nossos sonhos se podem tornar realidade. Afinal de contas, se o podes sonhar, também o podes realizar. 

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