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Coisas que eu [não te] disse

Tudo o que não consigo dizer, escrevo.

Coisas que eu [não te] disse

Tudo o que não consigo dizer, escrevo.

Pairando sobre mim

V de Viver, 03.05.20

Sinto que alguém me persegue. Corro. Tento correr mais rápido mas falta-me força. Sinto o peito a apertar. Os músculos das pernas retraiem-se, como se estivesse em esforço há várias horas. O ar começa a faltar-me. A cabeça fica pesada. Começo a ver tudo branco. Olho por cima do ombro. Está aqui. Vai apanhar-me. Acordo. Estou no meu quarto. Sozinha. Tento controlar a respiração. O suor escorre pelo meu rosto. Sinto uma estranha sensação de que estou a ver-me de cima. Como se fosse um filme, uma ação gravada de mim mesma que agora vejo enquanto estou colada ao teto do meu quarto. Vejo-me a levantar da cama. Entro na casa de banho e ligo a água do duche. Dispo-me. Entro na banheira e deixo-me purificar pela água que escorre tépida. Pareço relaxar por uns segundos para, logo de seguida, voltar a ficar tensa. Rígida. Vejo-me a sair do banho. Percorro a curta distância até à cozinha. Marcas da água, que escorre ainda pelo meu corpo, ficam no chão. Não pareço importar-me com isso, estranhamente. Não pareço importar-me com nada. Mas porque é que sinto que não estou dentro do meu corpo? Entro na cozinha, preparo alguma coisa para comer. Pego na taça e vou para a varanda. O sol está forte mesmo àquela hora da manhã. Ouço os pássaros. Vejo-me, novamente como se estivesse por cima de mim mesma, sentada a fechar os olhos e inspirar. Expiro. Pareço cansada. Sei que dormi mal. Tem acontecido muito últimamente. Ansiedade? Talvez, mas porquê? Vejo uma lágrima correr pelo meu rosto. Estou triste? Porque é que estou triste? Acabo de comer o pequeno almoço. Faço um café e volto para o mesmo sítio. Aquela cadeira, aquela varanda. Sinto-me em casa. Relaxo. Mas porque é que continuo a pairar sobre mim mesma? Acabo o café. Vejo o meu corpo a ficar, novamente, tenso. Entro no apartamento, está quente devido ao sol que bate nas janelas. Vejo-me agora, como que em piloto automático, a arrumar a casa. Faço a cama. Tudo, perfeitamente, no sítio onde deve estar. As almofadas encostadas umas nas outras de forma exímia. A colcha da cama esticada, sem uma única ruga. Agora a sala, tudo tem que estar no sítio certo. Depois a cozinha. Lavo a loiça. Arrumo tudo. Limpo tudo. Mas o que é que eu quero limpar? A minha casa ou a minha mente? Vejo-me a ligar, agora, o computador. Mas porque é que continuo a ver-me de cima? Ligo a música. Retiro da gaveta o papel onde sei que tenho os treinos escritos. Vou treinar? Mas apetece-me treinar? Vejo que comecei a treinar. Suar. Cansar-me. Sentir os músculos das pernas a doer. Vejo que os braços tremem do esforço das flexões. Estou cansada. Acelero ainda mais. Mais um esforço. Um último esforço. Sei que neste ponto me custa respirar, mas aqui, onde estou, não me custa nada. Será que ainda estou a sonhar? Paro. Sigo na direção da casa de banho. Dispo-me. Olho o meu corpo ao espelho. Ou melhor, o meu corpo olha-se ao espelho, porque eu estou aqui em cima, não é verdade? Como é que fui ali parar? Entro na banheira e deixo-me, pela segunda vez na mesma manhã, purgar pela água que corre serena pelo meu corpo. Sinto que estou a descer. Vou em direção ao meu corpo. Fecho os olhos. A água sai, subitamente, mais quente. Sinto o choque. A temperatura volta ao normal. E, como que por magia, estou com os pés dentro da banheira. Já não me sinto a pairar sobre mim. Já não me vejo a ser comandada por algo que desconheço. Já não me sinto pilotada pela vida. Agora sou eu que estou no comando.