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Coisas que eu [não te] disse

Tudo o que não consigo dizer, escrevo.

Coisas que eu [não te] disse

Tudo o que não consigo dizer, escrevo.

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V de Viver, 27.11.22

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Faço hoje trinta e dois anos de vida. Trinta e dois anos de altos e baixos. De sorrisos e lágrimas. De momentos bons e menos bons. Trinta e dois anos desta história que é a minha. 

Encontrei aquilo que sempre procurei. Paz. E encontrei onde menos esperava: dentro de mim.

Hoje sei que é dentro de nós que tudo existe. Que dentro de todos nós existe o bem e o mal. Que apenas temos que escolher qual dos dois lados queremos fazer sobressair na nossa vida. Que nem sempre o lado escolhido é o que se mostra mas que é no equilíbrio que está o segredo.

Hoje sei que é do lado de dentro que está a felicidade. Que não posso procurar nos outros aquilo que me falta. Que cada um dá o que tem. E que ninguém pode receber o que não dá.

Hoje sei que sou suficiente. Que me basto para ser feliz e que ninguém me pode completar porque não me falta nada. Eu sou inteira. 

Hoje sei que aceitar é a chave para chegar mais longe. Aceitar a nossa história. Aceitar os nossos pais e aquilo que eles nos deram, e também aquilo que nunca nos deram. Porque eles também têm uma história e que, tal como a minha é só minha, a deles é só deles.

Hoje sei que o amor próprio é o maior amor que podemos nutrir na nossa vida. Que se nos amarmos tudo à nossa volta muda. Que o amor é tudo e que existem milhares de tipos de amor. 

Hoje sei que as pessoas nos tratam como permitimos que nos tratem. Que a forma como nos amamos é como ensinamos os outros a amarem-nos. Que ninguém é permanente na nossa vida. E que amores e amigos vêm e vão, apenas a gente fica.

Hoje sei que nada é mais importante do que nos conhecermos a nós mesmos. Que toda a sabedoria vem daí, do auto conhecimento. 

Hoje sei que só nos abala aquilo que permitimos, que ninguém tem a força de nos tirar do nosso eixo.

Hoje sei que a vida é curta mas é boa. Que aquilo que nós procuramos também procura por nós. Que nada nem ninguém é por acaso na nossa vida. Que tudo o que aconteceu tinha que acontecer exactamente da forma que aconteceu. Que se formos a nossa prioridade tudo à nossa volta melhora. Que não devemos nada a ninguém e ninguém nos deve nada. 

Hoje sei que não prendemos ninguém por muito que exista amor. Que o caminho de cada um é individual e que quem chega à nossa vida nem sempre chega para ficar. Mas que todos, e quando digo todos refiro-me mesmo a todos, que aparecem na nossa vida trazem algo e levam algo.

Hoje sei que ninguém nos pode fazer tanto bem e tanto mal quanto nós próprios. Que a nossa vida só depende de nós. Que conseguimos, sim, tudo aquilo que queremos. Mas que aquilo que queremos não é permanente. E que está tudo bem em ser assim. Que todos estamos em constante evolução. Todos trilhamos caminhos diferentes mas todos com o mesmo propósito: viver a nossa vida à nossa maneira.

Hoje sei que o segredo para ser feliz é, realmente, ser feliz sem motivo. Que é nas pequenas coisas do dia a dia que a vida faz mais sentido. Que tudo é tão belo quanto a pessoa que o vê. Que não há certo ou errado porque as escolhas de cada um são exactamente isso, de cada um. Que a vida é muito melhor quando fazemos o bem e que quem planta o bem, cedo ou tarde colhe o bem de volta.

Hoje sei que a vida está a nosso favor e que quando temos a certeza do que plantamos não há como temer a colheita.

Hoje sei que tudo foi necessário para chegar onde estou. Todas as situações e pessoas que passaram na minha vida tiveram um propósito e sou-lhes, verdadeiramente, grata. 

Hoje sinto orgulho na mulher que me tornei e que continuo a lutar para ser. Mas trilho agora o meu caminho com muito mais paz do que antes. Com a certeza de que a vida sabe o que faz. 

Hoje sei que estou a viver a fase mais autêntica da minha vida. Que cada vez tenho menos medo do julgamento, que vivo para me agradar a mim e não aos outros como fiz durante tantos anos. 

Não podia deixar de partilhar tudo isto convosco. Vocês que me lêem, que me leram desde sempre, que souberam das minhas dores e das minhas mortes e renascimentos como mais ninguém. Vocês que sempre me leram nas fases menos boas, nos dias em que escrevia com as lágrimas a correr pelo rosto, nos dias em que a sombra se sobrepunha à luz. Vocês que, arrisco-me a dizer, me conhecem melhor que ninguém embora não conheçam o meu rosto. Conhecem a minha alma, acreditem. Por tudo isto, não podia deixar de vos agradecer. Porque também vocês fizeram, e fazem, parte desta viagem que é a minha vida. Deste caminho de encontro à minha melhor versão, de encontro à mulher que nasci para ser. Muito grata por vos ter por cá. 

Muito grata à vida por tudo o que passei, por tudo o que me ensinou e me levou a ser hoje esta mulher de trinta e dois anos de quem tanto me orgulho. 

Eu, tal como todos vós, já senti várias sensações ao longo da minha jornada. Mas nenhuma se assemelha a esta sensação de amarmos quem somos, de termos a certeza que estamos no caminho certo, de olhar para trás e ver que tudo o que aconteceu era necessário ao nosso crescimento.

Desejo que todos vocês possam sentir isto. Desejo a todos exactamente o mesmo que desejo para mim. Porque acredito que quando uma pessoa se cura é um passo a mais na cura da humanidade.

Grata a todos.

V

Gostava que me tivessem dito...

V de Viver, 06.04.22

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Foi ainda agora enquanto bebia café na varanda da minha casa. 

Aquela sensação de que tudo está no sitio. De que não me falta nada. É rara esta sensação em mim, quase sempre sinto que me falta algo.

Mas quanto mais me conheço, quanto mais olho para dentro de mim, mais consciente fico de que não me falta nada. Tenho em mim tudo o que preciso para ser feliz. Hoje sei que ninguém, além de mim, me pode fazer feliz. Mas sei também que a vida é cíclica e que nós mulheres somos mais ainda. Todos os meses, todos os dias da nossa vida, lidamos com mil e uma emoções. As alterações de humor são constantes mas acredito que se quisermos podemos aprender a lidar com elas. O primeiro passo e o mais importante é aceitar. Aceitar o que estamos a sentir. Depois perceber de onde isso vem.

A nossa mente, consciente e inconsciente, é um mundo inteiro. Nem sempre é fácil lidar com tudo aquilo que somos mas isso é bom. É sinal que somos muito. Hoje não duvido disso. A partir de hoje (desde há uns tempos, felizmente!) não permito que me digam que sou menos, que sou pouco. Não sou.

Não é a minha aparência, é a minha essência que faz de mim quem eu sou.

Porque eu não sou o meu corpo. Quem me dera ter aprendido isto antes. Sinto que deixei de viver muita coisa boa por causa da minha aparência. Por vergonha do meu corpo, de mim. Por achar que nenhuma roupa me ficava bem. Por ter acreditado quando me diziam (e dizem) que sou gorda. Gorda comparada com o quê ou com quem? - pergunto hoje em dia quando me dizem que estou gorda. Estou, não sou. Percebem a diferença?

Gostava que esta mensagem chegasse a muitas jovens, adolescentes, crianças, mulheres e homens por todo o mundo. Porque eu gostava que me tivessem dito isto muitas vezes: Tu não és o teu corpo!

Tive que aprender sozinha, aprender pela dor. A vida era tão mais bonita se aprendessemos pelo amor ao invés de aprendermos pela dor. Mas tudo é um constante processo. A vida é um processo. Nós e o nosso crescimento somos um processo. E viver o processo é tão bom. Acreditar no processo. Acreditar que nunca nada é para sempre. Que o que hoje nos parece um enorme problema amanhã, ou até daqui a pouco, já não é nada.

Tudo passa. Duas palavras e um significado gigantesco. Tudo passa.

Tenham sempre a certeza disso. 

Fotografia:@jacksondavid

Por mim

V de Viver, 29.01.22

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Hoje arrumei-me para mim.

Depois de treinar tomei um duche, sequei o cabelo e estiquei-o, fiz uma maquilhagem leve, perfumei-me com o meu melhor perfume e vesti um vestido novo. Sim, um vestido! Levei anos sem vestir um por vergonha. Vergonha das minhas pernas, da minha barriga, dos meus braços, enfim, do meu corpo. Vergonha do que os outros iriam pensar. Anos da minha vida em que limitei o meu guarda roupa tanto quanto me limitava a mim mesma. Não me aceitava, não aceitava o meu corpo. Sempre maior que as minhas amigas (em altura também, tenho 1,73m), destoava de todo o grupo. Era a gordinha. Sentia que o meu corpo não me pertencia. 

Hoje olho para o espelho e, embora finalmente goste do que vejo, sei que eu não sou o meu corpo. Sou muito mais que isso. 

Por isso decidi arrumar-me para mim mesma. E saí. Fui passear, fui fazer algumas compras que precisava, fui marcar o dentista. E fui de vestido! E fui a sentir-me linda! Tanto que nem queria despir o vestido quando cheguei a casa. Confesso que não me apetecia voltar para casa, coisa muito rara, porque adoro estar na minha casa. Mas apetecia-me passear. Apetecia-me, honestamente, passear de mãos dadas. Tenho que confessar que durante um momento pensei: "arrumaste-te assim e agora não tens ninguém para te elogiar, ninguém para apreciar, para te dizer como estás linda". Mas foi fugaz esse momento. Foi um pensamento dentre os milhares que temos por dia. Veio e foi embora com a mesma rapidez. Porque logo de seguida respondi-me: "arrumaste-te para ti, por ti, porque mereces sentir-te linda e bem contigo mesma". E após este breve pensamento, a contemplar-me numa montra qualquer, sorri e avancei. Passo a passo, de sorriso no rosto, segui o meu caminho em paz comigo mesma. 

Longe vão os tempos em que me odiava, em que não olhava para uma montra para não ver o meu reflexo. Hoje não. Daqui em diante não. Um corpo é apenas um corpo. Todos nós somos muito mais que o nosso corpo. Devemos, sim, cuidar do nosso corpo, tal como da nossa mente. Atrevo-me até a dizer que talvez a nossa mente seja ainda de maior importância. Mas sim, devemos cuidar do nosso corpo. Fazer exercício. Cuidar da nossa alimentação. Mas por amor. Por dedicação. Não porque alguém diz que estamos gordos demais ou magros demais. Não porque alguém decidiu um determinado padrão de beleza . Hoje, de dentro das minhas calças tamanho 42 (já retirei o vestido!) digo-vos de coração: somos o que somos por dentro, e isso reflecte-se por fora.

Se o interior estiver em paz, o resto tanto faz. 

Fotografia: @vincefleming

Eu perdoo-me

V de Viver, 30.12.21

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É o penúltimo dia do ano e após dois dias com duas situações diferentes em que me sinto uma merda no que diz respeito ao meu trabalho fico a pensar: o que é que eu tenho que aprender com isto?

Sinto-me ridícula. E acho que é essa sensação de ridículo e de desadequação que me faz sentir com o coração tão apertado. Uma espécie de ansiedade, uma vibração bem baixa que me aperta o peito e me faz sentir verdadeiramente mal. Uma dor que chega a ser física. 

Quero deixar isto em 2021.

Quero escrever para limpar a mente porque não quero voltar a pensar nisto. No quão ridícula fui. Na quantidade de vezes que me senti ridícula na vida. 

Portanto escrevo agora para me perdoar.

Eu perdoo-me por todos os erros do passado.

Eu perdoo-me por todas as vezes que agi sem pensar (como ontem à noite).

Eu perdoo-me por todas as vezes que fiz ou deixei de fazer algo que me fez sentir ridícula.

Eu perdoo-me por nem sempre saber como agir profissional e pessoalmente.

Eu perdoo-me por ter feito coisas das quais não me orgulho e que não gostava que me fizessem a mim.

Eu perdoo-me por todas as vezes em que não soube colocar limites.

Eu perdoo-me por todas as vezes que fiz coisas que não queria fazer. Por todas as vezes que disse sim quando queria dizer não.

Eu perdoo-me por todas as vezes que me deixei para trás.

Eu perdoo-me por todas as vezes que me senti burra. Fiz sempre o melhor que consegui, o melhor que sabia.

Eu perdoo-me por ter confiado em pessoas que não mereciam. Por confiar rápido demais, por não saber ver, de verdade, o interior de certas pessoas.

Eu perdoo-me por me ter deixado enganar. Por me ter entregue a pessoas que não mereciam, ter confiado, ter partilhado parte de mim e da minha vida.

Eu perdoo-me por nem sempre ter feito as escolhas certas, na altura pareciam ser as devidas.

Eu perdoo-me por ter magoado alguém e por me ter magoado a mim.

Eu perdoo-me por nem sempre ser tão inteligente quanto devia. Pelas vezes em que não coloquei em prática aquilo que sei, aquilo que digo aos outros.

Eu perdoo-me pelas falhas. Pelas desistências. Pelas mudanças de rota inesperadas.

Nem sempre fui a pessoa que quero ser. Nem sempre agi com a calma que deveria. Nem sempre pensei com clareza antes de agir (como ontem). Fiz figura de ridícula e ninguém gosta de se sentir ridículo. Mas eu perdoo-me por isso. Fiz sempre, este ano e em todos os outros, aquilo que me parecia mais correto. Agi sempre com o coração e talvez isso não tenha sido bom.

Mas perdoo-me porque fiz sempre, sempre, aquilo que me pareceu mais correto. 

Eu perdoo-me por me sentir uma falhada, por todas as vezes que me senti uma merda. Perdoo-me porque eu não sou uma merda. Sou um ser humano. E erro, falho, engano-me e, sim, faço figura de ridícula às vezes. Mas perdoo-me porque faço sempre o melhor que consigo. 

Esta é a única certeza que tenho: não sou perfeita mas sou sempre eu mesma.

 

PS: já passou. 

Há dias e dias

V de Viver, 08.11.21

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Há dias e dias.

Nem sempre está tudo bem, e está tudo bem em não estar sempre tudo bem.

A vida segue todos os dias e não espera por nós. Gosto de pensar que faço, todos os dias, tudo o que está ao meu alcance para aproveitar o dia. Excepto às vezes. Às vezes gosto de não fazer absolutamente nada. Mas, bem vistas as coisas, mesmo ao não fazer nada estou a fazer exactamente aquilo que me apetece e que é válido para mim.

Com o tempo aprendi que tudo é válido. Tudo o que nos faz sentir bem, tudo o que nos coloca um sorriso no rosto, tudo o que nos traz paz. Tudo. 

Por isso te digo que está tudo bem em não estar sempre tudo bem. Mas também te digo: nunca finjas que está tudo bem. Na minha opinião é bem mais válido aceitar que não está tudo bem quando não está tudo bem. Porque o primeiro passo para mudar seja o que for na nossa vida é a aceitação. E aceitar não é sinónimo de não mudar. Pelo contrário, é aceitando em amor tudo o que se passa que podemos perceber o que é ou não válido para nós e aí sim traçar uma rota para a mudança. 

Um bom dia e uma excelente semana para todos vós.

Circulo Fechado

V de Viver, 15.01.21

Já alguma vez sentiram o fim de um ciclo dentro de vocês? Uma sensação de paz, de que uma ponta se uniu à outra, o início unindo-se ao fim. Uma sensação, quase física, de que algo se fechou realmente. Já foram surpreendidos por essa experiência?

Hoje, depois da minha corridinha, decidi dar uma caminhada pela praia. Quase todos os dias o faço, mas hoje, provavelmente por estar um sol fantástico e uma temperatura agradável, apeteceu-me descalçar as sapatilhas e sentir a areia nos pés. E foi aqui, na minha praia, ouvindo a melodia do mar juntamente com a voz da Giulia Be que tocava nos meus fones. Foi aqui, a sentir a areia fria nos pés nus, a recolher conchas e a ver no horizonte o céu a unir-se ao mar. Foi aqui que senti algo a mudar dentro de mim. Algo a chegar ao fim. Algo a desenhar um círculo fechado. A transmitir-me a mensagem de que chegou ao fim mais um ciclo. De que está na hora de deixar para trás o passado. De que está na hora de abandonar a ilusão de que algo voltará a ser o que já foi. Porque nada volta a ser o que já foi. Porque a vida é feita de escolhas, de ciclos que se fecham e de outros que se abrem. Porque nós estamos em constante mudança e, claramente, não somos hoje a mesma pessoa que fomos ontem. Foi aqui, num dos meus sítios preferidos, que percebi que está na hora de seguir. Sim, a vida continuou a seguir todos os dias, mas refiro-me a seguir mesmo. A abandonar o que não foi e eu queria que tivesse sido. A deixar para trás o que não me serviu. A secar as lágrimas, levantar-me, passar as mãos nos joelhos esfolados pela queda, erguer a cabeça e seguir. Seguir de verdade. Seguir a minha vida, renovar os sonhos, viver um dia de cada vez. Mas faze-lo de coração leve. Em paz. Com a certeza de que fiz tudo o que poderia ter feito, de que dei o meu melhor, de que amei com cada partícula do meu corpo. Enquanto escrevo estas palavras sigo ainda na areia húmida e fresca. Em paz. Com a certeza de que o que aconteceu foi, exatamente, o que deveria ter acontecido. Assim como o que não aconteceu não era, certamente, para ter acontecido.

Vou contar-vos uma história...

V de Viver, 23.03.20

Era uma vez uma menina que sempre se achou diferente das outras. Logo em pequena via as amiguinhas com a mamã e o papá. Ela só tinha a mamã. Mas não se importava porque era feliz.

Foi crescendo e começou a perceber que continuava a ser diferente das amiguinhas. Enquanto ela era gordinha, as amigas eram magrinhas. Mas era uma criança, e as crianças não querem saber dessas coisas para nada. 

Como o tempo passa a correr, depressa ela se transformou em adolescente. Foi aí que as diferenças se acenturam e foi, também, aí que ela começou a senti-las com mais intensidade. Nos intervalos para o lanche juntava-se um grande grupo para comer no parque da escola. Cada um comia o que trazia de casa ou então o que ali comprava. Sandes mistas, bolachas, batatas fritas, sumos e tudo aquilo que os adolescentes gostam de comer. Ela não era diferente nisso. Também gostava de todas essas coisas, excepto de sumos, ela não gostava de sumos. Um dia enquanto um grupinho de meninas, do qual ela fazia parte, estavam a comer batatas fritas, uns colegas chegaram e, embora todas estivessem a comer a mesma coisa, um deles disse-lhe: "eh gorda, achas normal estares a comer porcarias?" Ela não percebeu. Estava habituada a que lhe chamassem gorda mas não percebia porque é que aquele comentário tinha que lhe ser dirigido apenas a ela. Afinal de contas estavam todas a comer a mesma coisa. 

O tempo passou. O tempo passa sempre muito rápido. Ela foi para a escola secundária. Claro que ela já se sentia diferente das outras. Por isso, quando, após os almoços na cantina, as amigas se dirigiam ao café para comprar gomas e chocolates ela ia, mas não comprava nada. Já sabia que ia ser olhada de lado porque era a única gordinha, e "as gordas não podem comer porcarias". Era uma frase que lhe estava quase tatuada, portanto, já evitava ter de a ouvir. Mas ela, afinal de contas, também era uma adolescente, não é? E os adolescentes conseguem ser ardilosos. Ela podia ser gorda, mas não era burra. Enquanto as amigas comiam no parque da escola, juntamente com os amigos ela dizia que tinha que ir à casa de banho. Levantava-se e ia, sozinha. Entrava na casa de banho, trancava a porta e comia o Twix que tinha trazido de casa. Ali ninguém a criticaria.

A vida seguiu. E quis o destino que a vida dela mudasse de uma forma que ela não foi capaz de controlar. Então, aos dezoito anos, deixou a candidatura da universidade aceite em cima da mesa e, contra todos os sonhos que tinha, começou a trabalhar num supermercado para poder ajudar a mãe. Não se envergonhou nem um bocadinho. A educação que lhe tinha sido passada pela mãe e pelos avós era que trabalhar é honra. E é. E por isso ela trabalhava todos os dias, com um sorriso nos lábios. Mas a mente dela continuava a levá-la a tomar decisões estranhas. Decisões que ela tomava havia muitos anos. Comer quando estava triste. Comer quando estava feliz. Comer porque sim. Comer porque não. E ela continuou a ser a gordinha. Comia escondida para não ser criticada. Comia chocolates, comia bolachas, comia bolos. Comia o que lhe apetecia. Mas só escondida, aos outros dizia que estava sem fome e nunca, jamais, comia "porcarias" à frente de ninguém. 

A vida seguiu, ele teve mais trabalhos. Tinha uma vida normal. Tinha namorado, tinha amigas. Era considerada muito simpática pelas pessoas que a rodeavam. Uma pessoa sempre alegre e bem disposta. Mas ninguém a conhecia de verdade. Ninguém sabia o segredo que ela escondia. Ninguém podia imaginar que ela comia tabletes inteiras de chocolate de uma só vez. Que comia um pacote de Filipinos em menos de dez minutos. Ninguém sabia. Ninguém via. 

Ela vestia um tamanho 42/44 mas, em seis meses, passou para um tamanho 48. Foi o tamanho máximo a que chegou. Mas os comentários das pessoas que a rodeavam, principalmente no trabalho, faziam-na sentir como se vestisse um 58. Certo dia decidiu que a vida tinha que mudar. Estava cansada de ser assim. Cansada de não gostar do que via no espelho. Cansada de nunca ir à praia ou à piscina com o grupo de amigos, cansada de não sair por não ter o que vestir que lhe assentasse como nas amigas. Cansada daquela frase que tanto lhe diziam: "tens uma cara tão linda, devias emagrecer um bocadinho".

Inscreveu-se no ginásio. Começou a treinar e, aquilo que ela pensou que iria ser uma tortura, tornou-se num escape. Reduziu aquela vontade de comer a toda a hora. Deixou de comer às escondidas. Emagreceu e andava feliz. Afinal de contas já estava a ficar menos diferente de todas as outras colegas e amigas. Mas, por muito felizes que estejamos, há sempre alguma coisa que pode correr mal. E com ela não era exceção. E nos dias maus a fome voltava. E ela, mais uma vez, comia tabletes inteiras, bolachas, gomas, tudo aquilo que lhe preenchesse o vazio.

Mas enquanto a vida segue as pessoas crescem. E eu disse-vos no ínício desta história que ela não era burra. Não. Ela era até um pouco inteligente. E um dia soube que sofria de compulsão alimentar. Ninguém lhe disse. Ela leu, e leu, e leu sobre o assunto. E percebeu que se falava muito de transtornos alimentares: bulimia e anorexia. Mas ninguém falava de compulsão alimentar. As pessoas eram gordas porque não sabiam fechar a boca, ou porque não tinham força de vontade. E com o passar dos anos ela percebeu que era mentira. O que não falta numa pessoa com excesso de peso é força de vontade. Perguntem a uma pessoa obesa quantas dietas ela já tentou? Dieta das maçãs, dieta de Dukan, dieta da Beyoncé, dieta low-carb, dieta Atkins. Uma pessoa com excesso de peso conhece-as todas. E, provavelmente, mais algumas. Já tentou de tudo e continua a tentar, e as pessoas dizem que elas não têm força vontade? 

Então ela começou a ler, a estudar. E percebeu que tinha que controlar as emoções. Que a fome que ela não conseguia matar era a fome emocional. E leu. E continou a ler, a pesquisar a procurar. E depois percebeu que não estava sozinha. Que não era a única. Que havia muitas mais mulheres com o mesmo problema. Mas as pessoas sentem vergonha. Ela também sentia vergonha.

Mas continuou a ler. Mas a vida não parou para ela ler, para ela estudar. A vida continuou. E a dela deu umas quantas voltas. Saiu de onde estava, foi viver para uma terra diferente, um trabalho diferente, e tinha recaídas. Continuou a tê-las. Mas agora ela já sabia qual era o problema. E é mais fácil lidar com alguma coisa quando sabemos do que se trata, certo? Fora necessário chegar aos vinte e oito anos de idade para perceber qual era o problema. E percebeu que não é o que ela come. É o quanto ela come, o porquê do que ela come. Percebeu que as pessoas fizeram um filme gigante à volta da alimentação, de tal forma que aparecem listas na Internet, e até em revistas sobre alimentos proibidos! Alimentos proibidos? Ela não é nutricionista. Não estudou medicina, nem ciências da nutrição e as suas palavras valem o que valem. Mas, alimentos proibidos? Já se deram alguma vez conta de que se alguém vos disser: "não pensem num morango", o vosso primeiro pensamento é um morango? Porque o nosso cérebro é assim mesmo. Agora imaginem se alguém vos disser: não pode comer pão e chocolate. Vocês vão andar sempre a pensar no pão e no chocolate. Acreditem!

Mas, voltando a ela, que é a personagem principal desta história. Ela continua a lutar todos os dias contra essa doença. A cada dia que passa ela está mais firme, mais convicta e as coisas correm melhor porque acabam por sair naturalmente. A única coisa que ela quer é que mais pessoas que sofram do problema saibam que não estão sozinhas. Ela quer que quem lida com adolescentes tenha o cuidado de lhes explicar que todos os corpos são perfeitos. Que o nosso corpo é perfeito desde que o amemos.

Ela é a V. e não posso dizer qual é o fim desta história, simplesmente porque não sei. A vida dá voltas, a vida corre, a vida muda. Mas hoje, tenho a certeza que ela é mais forte que ontem, e com certeza menos do que amanhã. 

Podemos aprender todos os dias. Podemos ser melhores todos os dias. Nunca devemos buscar a perfeição. Mas acima de tudo, devemos sim, amar quem somos, muitíssimo.