Olá pai! Gostava de te fazer algumas perguntas.
De que cor são os teus olhos, pai? Qual é a cor do teu cabelo? És alto? És magro? Vives onde, pai? Tenho realmente duas irmãs como diz quem te conhece? É verdade que elas são enfermeiras, as duas? É verdade que vives numa casa muito grande e que tens um carro topo de gama? Os teus pais ainda são vivos, eu ainda tenho avós? Tenho muitos primos, pai? Vocês juntam-se sempre nos aniversários e no Natal, pai? A família é muito grande?
Desculpa lá, pai. Mas tenho tantas, mas tantas perguntas.
Porque é que nunca me quiseste, pai? Porque é que abandonaste a mãe quando ela mais precisava de ti? Quando ela viu morrer o irmão mais novo tendo um bebé prestes a sair-lhe das entranhas. Seis dias, pai. Seis dias separaram a morte do irmão da mãe, do meu nascimento. E onde estavas tu, pai?
Porquê, pai? Porque é que me fizeste crescer e viver com a humilhação de ter um X no lugar do teu nome? Porque é que não quiseste sequer que eu tivesse o teu apelido? Namoravas a mãe há muito tempo quando ela ficou grávida, se fosse uma aventura de uma noite eu podia fingir que respeitava a tua decisão. Não respeitaria. Mas, pelo menos, poderia ir buscar algum consolo a esse facto. Mas esse facto não existe, pai. Vocês eram namorados. E tu escolheste abandoná-la.
Julgaste ser cedo, pai, ter essa designação aos vinte e sete anos? Então porque é que foste pai logo no ano seguinte? E outra vez logo a seguir. Duas filhas. Duas raparigas. Eu também sou rapariga, pai!
No que é que elas são melhores que eu, pai? Não tenho ciúmes, como poderia ter? Nunca te conheci. Tenho dúvidas, pai, e curiosidade. Porquê, pai? Porque é que elas tiveram direito a estudar na universidade, segundo fala quem te conhece. Porque é que elas tiveram o privilégio de formar-se em enfermagem, as duas? Porque é que elas tiveram direito a uma vida recheada e eu não, pai? Decidiste que elas seriam melhores que eu mesmo sem me conheceres?
Porque é que nunca enviaste um cêntimo à mãe, pai? Sabias que ela trabalhou muito, todos os dias, do nascer ao pôr do sol, para que eu conseguisse estudar? Não conseguiu pagar-me os estudos na universidade. Mas ficou, imensamente, feliz quando acabei o secundário sendo das melhores alunas da escola. Sim ela ficou muito orgulhosa. E sabes o que ela sentiu depois, pai? Quando não me conseguiu pagar os estudos na universidade? Quando me viu obrigada a trabalhar para ajudar? Não sabes pois não, pai? O que é olhares para a tua mãe e veres chispar nos olhos dela a desilusão de quem se esforçou para conseguir um futuro para a filha e não conseguiu, ainda assim, proporcionar-lho. Não sabes, pai. O que é veres a tua mãe dizer que não tem fome e saberes que o que ela está a fazer é a dar-te a comer a última refeição que tem em casa. Não sabes, pai.
Mas ainda tenho mais perguntas, pai. Uma vida inteira delas.
Porque é que nunca tiveste curiosidade em me conhecer? Sabes o que eu faço na vida, pai? Sabes onde cheguei? Provavelmente se soubesses ficarias feliz. Ficavas, pai? Ou tudo o que é relacionado comigo não te interessa mesmo?
Porquê pai? Porque é que me obrigaste a crescer sem saber o que é chamar pai a alguém? Tiveste tantos anos para me procurar, pai. Sempre soubeste onde a mãe vivia. Sempre soubeste como era fácil encontrar-me naquele meio pequeno. Mas nunca quiseste, pai.
Não sei o teu nome completo. Não sei a tua idade. Não sei a tua data de aniversário. Não sei sequer qual é o teu aspecto. Quem sabe se não nos cruzámos já alguma vez, pai? Talvez.
Sabes pai, estou quase a fazer vinte e nove anos. Sim, faço-os esta semana. E a idade trouxe-me maturidade. Mas a idade trouxe-me, sobretudo, sabedoria. Sabedoria para saber que algumas perguntas nunca vão ter uma resposta. Mas, mais importante que isso, a vida e a idade mostraram-me que por vezes tudo aquilo que nós mais queremos, deixa, um dia, de fazer sentido. Que as respostas que tanto almejavamos deixam de ser importantes.
Sempre te quis, pai. Sempre quis que me quisesses, pai.
Sonhei durante muitos anos que um dia tu chegarias ao pé de mim com uma resposta para cada uma das minhas perguntas. E até me atrevi, tamanha era a minha inocência, a pensar que, talvez, talvez essas respostas fizessem sentido. Talvez tu tivesses tido os teus motivos para nos abandonares.
Sonhava que chegarias perto de mim, me abraçarias e me pedirias perdão, em lágrimas. Que as nossas lágrimas se juntariam formando um imenso mar salgado. Que choraríamos juntos por tudo o que nos foi tirado, por todos os anos de afastamento. Que me apresentarias, com orgulho, à tua família. Que eu passaria a fazer parte da tua vida.
Mas foste tu, não fostes, pai?
Foste tu que nos tiraste estes anos todos. Foste tu que não me quiseste. Foste tu que escolheste fingir que eu nunca existi. E és tu que continuas a fingir que eu não existo.
Mas sabes que mais, pai?
Eu não te quero. Não quero saber o teu nome. Não quero saber quem és ou onde estás. Não quero fazer parte da tua família. Não quero, sequer, saber se estás morto ou vivo. Embora saiba que estás vivo porque há sempre alguém que faz questão de me lembrar.
Tu, paizinho, foste um cobarde.
E existem cobardes que se arrependem e voltam atrás. Emendam os seus erros. Remendam o passado agindo no presente. Mas tu não. Tu nunca o quiseste fazer. Foi mais fácil para ti fingires que eu não existia.
Foste um cobarde, pai.
Hoje posso afirmar, feliz, que não preciso de ti. Mas já precisei muito. Já me fizeste muita falta.
Mas não mais.
Fecho este ano o ciclo durante o qual fui apenas uma menina à espera que o pai a amasse. À espera que o pai a quisesse, lhe desse carinho e amor. Uma menina que sentiu sempre que tinha feito alguma coisa errada. Que cresceu a pensar que se o pai não a queria ninguém a ia querer. Uma menina de olhar triste que sorria, chorando por dentro, sempre que via os primos a ter uma brincadeira com o pai. Os amigos com os pais nas festinhas da escola. Que se enchia de lágrimas ao ver uma filha com um pai fosse qual fosse a situação.
Essa menina deixou de existir hoje. Agora mesmo ao finalizar este texto.
Adeus, pai!