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Coisas que eu [não te] disse

Tudo o que não consigo dizer, escrevo.

Coisas que eu [não te] disse

Tudo o que não consigo dizer, escrevo.

Desafio 30 dias de escrita

V de Viver

Felicidade. Era a palavra que melhor lhe descrevia o estado de espírito sempre que se reuniam na casa dos avós. Aquele tinha sido só mais um almoço. Só ela, a mãe, a irmã, a tia, o tio e o primo, e os avós. Não lhe parecia que a felicidade pudesse ser mais do que aquilo. Almoçaram o feijão cozinhado ao lume pela avó. O avô fritara fatias de pão em azeite. Acabam de comer e enquanto a mãe e a tia, lavam a loiça e tratam de arrumar a cozinha, ela, a irmã e o primo seguem o avô e o tio. O avô e o tio vão até ao quintal. Aquele cheiro ao quintal dos avós era a coisa mais maravilhosa do mundo. Ouve a avó a falar com as filhas dentro da cozinha. Ela segue atrás da irmã e do primo. Sorri ao pensar como eles fazem uma dupla engraçada. Praticamente do mesmo tamanho, uma diferença de seis meses um do outro. Eram como irmãos. Mas isso não tinha nada que ver com a idade. Ela também considerava aquele primo, mais do que aos outros, como um irmão. Os pequenos seguiam no alcance do avô e do tio. Ela senta-se no chão de cimento do quintal. O dia está morno para aquela altura do ano. O sol espreita com intensidade e ela sente os raios a tocarem-lhe o rosto. Sabe que se a avó a vir ali vai gritar-lhe para que saia do sol antes que fique doente.  Sorri com o pensamento e desloca-se um pouco para ficar à sombra da grande ameixeira que sempre existiu no quintal dos avós. Não quer arreliar a avó. A mãe e a tia espreitam à porta do quintal. Falam sem cessar mas ela não as escuta. O avô abre o portão e diz: - Vamos, vá. Agora vamos todos dar um passeio ao campo. Os mais pequenos saltam de alegria e correm atrás do avô. Ela não salta, mas apenas porque já se considera uma mulherzinha, não há necessidade de se comportar como uma criança, pensa. Rejubila-se por dentro e saí também atrás do avô. Ao chegar ao ponto mais alto da travessa olha para trás. Vê a mãe e a tia, seguem lado a lado, falando baixo como se estivessem a partilhar segredos. A avó e o tio não os acompanham. A avó está demasiado debilatada para fazer caminhadas. Sempre a conhecera queixosa dos joelhos. O tio foi para casa ouvir música, tem a certeza disso. É o que ele faz sempre depois dos almoços de família, e muitas vezes ela acompanha-o. Na altura ela não sabia mas aquele tio viria a ser culpado por ela gostar tanto de música. Mas hoje quer seguir o avô. Sabe que com ele pode aprender o nome de muitas flores e árvores que irião encontrar no caminho. E, de qualquer modo, quando tem que escolher entre qualquer outra coisa e a companhia do avô a resposta é sempre óbvia. O avô. Seguem pelo caminho de alcatrão até entrarem num caminho de terra batida. O cheirinho a campo preenche o ar. Ouvem-se mosquitos a passar à volta da cabeça deles. Borboletas pairam, livres. Os pássaros cantam. Uma melodia enigmática, mágica, celestial. Ouvem-se as vacas a mujir ao longe. O relinchar dos cavalos. Todos os sons, simultaneamente, formam uma harmoniosa sinfonia. Ela, a irmã, o primo e o avô seguem em linha. Tão juntos que quase podiam tropeçar uns nos outros. Mas só assim conseguem ouvir tudo o que o avô diz. Esta não é a primeira vez que dão este tipo de passeio. Uma caminhada curiosa. Partilham risadas, cheiram os mesmos cheiros, vêm as mesmas paisagens. Campos verdes a perder de vista. Sobreiros. Azinheiras. O Alentejo é um sítio lindo. Seguem viagem por entre papoilas, mal-me-quer, e todo o tipo de flores silvestres. Ela olha para o avô. Nos olhos dele lê-se felicidade. Adora os netos. Adora o campo. Ela não consegue deixar de pensar que um dia o avô vai partir. Afasta as lágrimas que se lhe assomaram ao olhos. O avô parece sentir-lhe a inquietação pois chega-se a ela, passa-lhe o braço pelos ombros, deposita-lhe um beijo na cabeça e diz: - Minha menina! O medo extingue-se. A felicidade volta. Vê os pequenos a saltar mais à frente. O avô segue ao lado dela em silêncio. Olha por cima do ombro e vê a mãe e a tia na sua habitual conversa. Sorri. Dá-se conta do quanto valoriza aqueles momentos. Não passa de uma adolescente mas já sabe bem o que é o amor. Família. Família é o amor. 

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